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Desde que a série Adolescência aterrou na Netflix, a conversa sobre o que é “ser homem” ganhou novo fôlego. E não estamos a falar de debates filosóficos. Falamos de vídeos virais, fóruns online e influencers com milhões de seguidores a moldar (ou a distorcer) a forma como muitos rapazes veem a masculinidade.
Entre sugestões de como “voltar a ser alfa” e discursos contra o feminismo, eis que surge um (não tão novo) universo digital, onde a Red Pill é o comprimido do dia.
Mas como é que uma metáfora de um filme virou um movimento? E porque se tornou numa espécie de religião para milhares de homens (muitos deles ainda adolescentes)?
Neste artigo, descemos à toca do coelho para perceber de onde vem este fenómeno, como se alimenta e o que está realmente em jogo.
“The Red Pill” é uma comunidade online na rede social Reddit que defende uma visão do mundo centrada numa interpretação misógina da dinâmica entre homens e mulheres.
O nome deriva de uma das cenas mais icónicas do cinema. Inspirado no filme Matrix (1999), é uma referência ao momento em que a personagem de Laurence Fishburne (Morpheus) oferece uma escolha a Keanu Reeves (Neo): “Se tomares o comprimido azul, a história acaba, acordas na tua cama e acreditas no que quiseres acreditar [mundo ilusório]. Se tomares o comprimido vermelho, ficas no País das Maravilhas e eu mostro-te até onde vai a toca do coelho [realidade consciente]”.
A toca do coelho, neste caso, é a “realidade” de que as mulheres controlam o mundo e os homens estão à mercê do seu poder e desejos.
Para os defensores do Red Pill, “tomar o comprimido vermelho” simboliza o momento de rutura em que despertam das ideias “manipuladoras” dos movimentos feministas.
Assim, a cultura "Red Pill" tornou-se um dos pilares da manosfera - um ecossistema digital que inclui fóruns, canais de YouTube, subreddits, podcasts e perfis em redes sociais. Neste espaço, homens que se sentem de alguma forma marginalizados discutem temas relacionados com masculinidade, direitos dos homens, relações de género, poder e atração.
Estas plataformas são uma mistura de raiva e curiosidade, e vão desde grupos de autoajuda masculina com partilha de conselhos de saúde, planos de treino e regimes alimentares, até sites mais extremos, onde são promovidos ideais misóginos.
Os primeiros sinais de vida da manosfera surgiram em fóruns e blogues online, no início da década de 2000.
Os Redpillers mostravam-se perdidos numa “nova” realidade: um mundo onde as mulheres tinham poder financeiro e sexual sobre as suas próprias vidas e corpos e onde já não havia espaço para os modelos masculinos tradicionais.
A Red Pill alimenta-se dessa insegurança, oferecendo respostas simplistas para questões complexas. O problema? Essas respostas promovem uma masculinidade tóxica, onde mostrar emoções é fraqueza, a empatia é sinal de submissão e o poder é sempre uma questão de dominação.
Este fenómeno reflete uma crise profunda da identidade masculina.
A Red Pill e a manosfera exploram a ansiedade e angústia de muitos homens face a dois cenários: a alegada perda de privilégios sociais tradicionais e a existência de expetativas e patamares sociais inantingíveis.
Sem modelos de referência de masculinidade saudável, esta frustração é canalizada para uma retórica de vitimização e antagonismo face não só ao feminismo, mas a “outros tipos de masculinidade”.
O resultado é a propagação de estereótipos de masculinidade tóxica: os homens “de verdade” são viris, corajosos, líderes, confiantes, agressivos, sedutores e rejeitam qualquer vulnerabilidade ou emoção.
Para muitas pessoas, estes conceitos não têm grande significado. Para outras, são uma parte essencial do vocabulário da manosfera.
Este universo tem o seu próprio dicionário, com conceitos e expressões que incluem:
Compreender esta linguagem ajuda a compreender e a combater estes estereótipos.
Com milhões de visualizações e uma certeza inabalável sobre como o mundo "realmente deve funcionar", influencers como Andrew Tate, Roosh V, Tiago Paiva e Numeiro (João Barbosa) são alguns dos rostos mais visíveis da Red Pill moderna.
Na internet, misturam conselhos de desenvolvimento pessoal com uma narrativa de "masculinidade restaurada", onde o sucesso é medido em dinheiro, estatuto e dominação sobre as mulheres.
Hoje, estas opiniões e desabafos são expressos em diversas plataformas, desde o Youtube a podcasts, do Twitter ao Discord.
Graças ao algoritmo, estes discursos tornaram-se vozes influentes entre adolescentes e jovens adultos do sexo masculino.
Sabes aquele momento em que vês um vídeo só porque apareceu e, de repente, parece que o teu feed decidiu que aquele tema é a tua nova obsessão?
Aqui entra o grande maestro invisível: o algoritmo. Um clique inocente num vídeo de desenvolvimento pessoal pode rapidamente levar a um buraco negro de conteúdos cada vez mais extremos.
E a ética? Não está no top de prioridades do algoritmo. O que está é o teu tempo de atenção e ele quer cada segundo.
Os adolescentes de hoje crescem num mundo onde as redes sociais são o oráculo. Tudo isto numa altura em que ainda estão a formar a sua identidade e a descobrir quem são.
Nesta fase da vida, muitos jovens inseguros vão à procura de autoconfiança, clareza e solidariedade mas acabam por render-se a um discurso mais radicalizado.
A Red Pill oferece apoio e respostas simples para inseguranças complexas, promovendo um sentimento de empoderamento e recuperação da masculinidade.
A exposição precoce a esta cultura digital tóxica tem impacto na forma como os jovens olham para a masculinidade, a saúde mental masculina e as dinâmicas sociais entre homens e mulheres.
Escolas, famílias, profissionais de saúde mental e plataformas digitais têm um papel a desempenhar na promoção de uma masculinidade moderna que inclua escuta, responsabilidade e autenticidade.
É preciso criar momentos de reflexão, sem julgamentos nem competitividade.
Por todo o mundo estão a nascer projetos que procuram desmistificar a vulnerabilidade, promover o cuidado próprio e cultivar relações baseadas em empatia e respeito mútuo.
Estas abordagens desafiam a narrativa de que o feminismo é uma ameaça, mostrando que homens também ganham com a igualdade de género e com a liberdade de expressar emoções sem estigmas.
Eis algumas que podes seguir:
1. Promundo
A Promundo é uma organização não governamental brasileira cuja missão é promover a igualdade de género e prevenir a violência, com foco no envolvimento de homens e mulheres na transformação de masculinidades.
A Call to Men é uma organização que pretende transformar a sociedade, promovendo uma masculinidade saudável e respeitosa.
O seu trabalho envolve oferecer formações e recursos educativos para empresas, agências governamentais, escolas e grupos comunitários. O objetivo é educar e capacitar os homens para que possam manifestar-se e agir na prevenção da violência e da discriminação de género.
The ManKind Project é uma comunidade de homens para o século XXI. Trata-se de uma organização sem fins lucrativos de formação e educação com três décadas de sucesso comprovado, que organiza programas de desenvolvimento pessoal experiencial.
“Homens reais. Conexão real. Crescimento real”. Este é o lema do EVRYMAN, que ajuda homens a desenvolverem resiliência emocional, a cultivarem relações significativas e a descobrirem um propósito através da conexão e da partilha de experiências, como retiros, coaching e outros eventos.
Liderados por homens que já percorreram este caminho, o projeto cria espaços baseados na confiança, na curiosidade e no crescimento.
The Man Cave é uma instituição de caridade australiana dedicada à masculinidade saudável e à saúde mental preventiva para adolescentes e jovens adultos. Trabalha com escolas para oferecer acampamentos, workshops e apresentações, desafiando estereótipos de género problemáticos.
O seu intuito é criar um espaço seguro para que todos os homens tenham relacionamentos saudáveis, contribuam para a sua comunidade e alcancem o seu pleno potencial.
Estes fóruns e blogues tornaram-se um refúgio de partilha de desabafos sobre as mulheres e opiniões tóxicas.
Em vez de educação e empatia, os adeptos do Red Pill recebem desprezo e indignação.
Ainda há muito caminho a fazer para normalizar masculinidades que não estão presas ao passado. Mas todos temos o poder de nos manifestar, desafiar estes estereótipos e transformar a forma como os homens se relacionam consigo próprios, com os outros e com o mundo.